A Pantufla de Vidro



Personagens (ano de nascimento – ano de morte):

Gata Borralheira (1290 – 1307)
Fidalgo, pai de Gata Borralheira (1250 – 1309)
Segunda esposa do fidalgo (1285 – 1303)
Fada-madrinha de Gata Borralheira e terceira esposa do fidalgo (1272 – 1376)
O rei (1271 – 1331)
Filha mais velha da fada-madrinha (1284 – 1306)
Filha caçula da fada-madrinha (1293 – 1306)



No dia 15 de dezembro do ano de 1302, certo fidalgo, para a tristeza de sua filha, casou-se pela segunda vez, com uma mulher que não simpatizava nem um pouco com a menina. Na mesma casa, vivia a madrinha da jovem, a quem esta amava muito.
Então, na noite do dia 13 de fevereiro de 1303, a filha do fidalgo entrou no quarto da madrasta enquanto esta dormia e cortou-lhe o pescoço. Em seguida, foi correndo acordar o pai dizendo-lhe:
-Senhor meu pai, estais outra vez viúvo; acabo de vos matar a esposa. Rogo-vos que vos caseis com minha madrinha, pois é esta a mãe que sempre anelei.
E como o fidalgo sempre cedesse cegamente aos desejos da filha, atendeu-lhe o pedido e casou-se com a madrinha na manhã seguinte, dando uma grande festa durante a qual a falecida esposa foi também velada e sepultada.
Mas logo na manhã da noite de núpcias, a madrinha tratou de mostrar bem depressa a mulher que era de verdade. Entrou no quarto da afilhada e a arrancou violentamente da cama. Em seguida, tirou-lhe as roupas, deu-lhe um avental velho e sujo para vestir e lhe disse:
-De hoje em diante, ouvida-te de tuas belas roupas; desta casa nada mais te pertence; e se queres comer pão, trabalharás na cozinha e em todo vil serviço da casa, do nascer do sol ao anoitecer.
E o que a madrinha decretou se cumpriu, revelando-se ela, assim, uma madrasta centenas de vezes pior que a falecida.





Uma noite, quando foi a menina queixar-se disso ao pai, ele lhe respondeu:
- Não foste tu que a quiseste por mãe? Não mataste minha mulher para me casar com tua magnífica madrinha? Pois vai agora choramingar ao pé do fogão, rapariguinha à toa! E se te atreves a matar mais uma esposa minha, entrego-te ao rei para que te mande decapitar, meretriz!
E choramingar ao pé do fogão foi o que ela fez. Como o vento soprasse muito forte dentro da cozinha, as cinzas do borralho voaram bem de encontro ao rosto da jovem, molhado pelas lágrimas. Na manhã seguinte, quando ela apareceu no salão de refeições com a cara quase preta de fuligem, o pai lhe disse ironicamente:
-Buon Giorno, gatta cenerèntola!
E daquele momento em diante, nunca mais ela foi chamada por seu nome de berço ou qualquer outro além de Gata Borralheira, até porque chorar junto ao fogão foi um hábito que ela manteve.
E Gata Borralheira, até o dia 21 de maio de 1306, suportaria essa miserável vida imposta pela atual madrasta. Foi nesse mês e ano que o rei resolveu dar um grande baile que aconteceria na noite dos dias 10, 11 e 12. Todas as famílias fidalgas receberam convite.
Na noite do dia 10, depois que o pai saiu com a esposa para a festa, Borralheira foi ao quarto da madrasta e roubou-lhe a vara de condão (pois embora eu não vo-lo tenha dito, a madrinha e madrasta de Borralheira era fada). Em seguida, tratou de arranjar uma abóbora e tirou-lhe toda a poupa, deixando a casca vazia. Bateu então na casca com a vara e essa se converteu por encanto num magnífico coche real. Em seguida, apanhou no jardim seis camundongos, uma ratazana e três lagartos. Com a vara, converteu os camundongos em elegantes cavalos, a ratazana em um cocheiro e os lagartos em lacaios. Por último, transformou seu velho avental em um magnífico traje de baile e suas pantuflas surradas em vidro. Deslumbrantemente trajada, Borralheira entrou no coche, que a conduziu ao palácio do rei.
Assim que a jovem adentrou o salão, o rei ficou impressionado com sua beleza e foi imediatamente convidá-la para dançar. O soberano não quis dar atenção a mais ninguém pelo resto da noite, tão encantado estava com a moça, e quis acompanhá-la até sua casa na hora de partir. Mas na primeira distração dele, Gata Borralheira tratou de fugir. Ao chegar em casa, pegou rapidamente a varinha e converteu novamente o coche em casca de abóbora, os cavalos em camundongos, o cocheiro em ratazana, os lacaios em lagartos, o traje no velho avental e as pantuflas de vidro nas pantuflas surradas.


Na noite do dia 11, Gata Borralheira foi novamente ao baile, utilizando a varinha de condão do mesmo modo, à diferença que desta vez seu traje era ainda mais magnífico que o primeiro. O rei não coube em si de contente ao vê-la novamente. Dançou com ela por bastante tempo e quis também desta vez levá-la pessoalmente para casa, mas outra vez ela deu conta de escapar. Como no dia anterior, ela correu para casa e reverteu rapidamente as transformações que fizera com a vara, antes que o pai e a madrasta pudessem chegar e ver.
Na noite do dia 12, Borralheira apareceu no baile muito mais bela que nas duas noites anteriores. O rei se sentia mais feliz que nunca ao lado da jovem, e decidiu que desta vez não a deixaria fugir. Mas a moça era muito astuta e o soberano não conseguiu evitar que ela novamente o fizesse, embora com tanta pressa, que uma das pantuflas de vidro lhe houvesse caído do pé na escadaria do salão. O rei encontrou a pantufla e passou o resto da noite contemplando-a com muita tristeza.
Na manhã seguinte, o soberano decretou que todas as jovens do reino fossem ao palácio o quanto antes para experimentar calçar a pantufla, e que aquela em que ela servisse tornar-se-ia sua rainha.
A madrasta então mandou que suas duas filhas fossem imediatamente ao palácio, pois estava confiante em casar com o rei uma das duas. Primeiro foi a filha mais velha provar a pantufla de vidro. Como ela tinha o dedão do pé grande demais, cortou-o fora antes de ir. Assim, a pantufla serviu-lhe perfeitamente. O rei então foi com a moça em seu cavalo à casa da mãe para pedir sua mão em casamento.
No caminho, passaram pelo cemitério onde estava sepultada a antiga madrasta de Gata Borralheira, e ouviram os espíritos dos mortos dizerem em coro:
-Fostes enganado, ó rei confiante! Tirai a meia com sangue! Vede o pé desta farsante!
O rei tratou logo de descer do cavalo e tirar do pé da moça o sapato e a meia avermelhada de sangue. Quando viu o pé dilacerado, ficou quase louco de cólera por ter sido enganado. Puxou violentamente a moça pelo braço fazendo-a cair do cavalo. Assim que ela se ergueu do chão, o soberano esbofeteou e socou-lhe a cara muitas vezes, fazendo-a cair de novo. Em seguida, pegou um grosso pedaço de pau que encontrou no chão e com ele bateu na jovem ainda mais, na cabeça, nas costas, no peito e na barriga. Quando ela já estava com o rosto completamente desfigurado e nem podia se mexer devido aos maus tratos, o rei mandou que lhe cortassem a cabeça com uma espada e enterrassem seu corpo como indigente naquele mesmo cemitério. A cabeça foi posta numa estaca fincada em cima da sepultura, como exemplo a quem quer que pensasse dali para frente em fazer o rei de imbecil.
Quando a mãe soube o que se passara com a filha mais velha, caiu nos mais dolorosos prantos que se possam imaginar. A filha mais nova, porém, era muito fria e ousada e não estava disposta a desistir de ser rainha por conta do destino da irmã. A mãe implorou que ela não fosse ao castelo enganar o rei, e esperneou até não poder mais, mas a jovem respondeu:
-Não sou covarde, minha mãe! Quero ser rainha e nada me impedirá! Cortarei fora meu calcanhar e irei ao palácio calçar aquela pantufla.
E a menina fez exatamente como disse. Também nela a pantufla de vidro serviu perfeitamente, e o rei a levou para a casa da mãe para pedir-lhe a mão. Ao passarem pelo cemitério, novamente ouviram-se os mortos dizerem:
-Fostes enganado, ó rei confiante! Tirai a meia com sangue! Vede o pé desta farsante!
O rei examinou o pé da menina e também desta vez constatou a farsa. A moça entrou em desespero, pois esperava acontecer-lhe o mesmo que à irmã. Mas em vez disso, o rei, sem dizer nada, seguiu com ela para a casa da mãe. Durante o caminho, a jovem agradeceu ao rei, certa de que fora poupada. Chegando à casa, o rei foi logo ter com a madrasta, dizendo-lhe furioso:
-Perder uma filha não vos bastou? Quiseste ainda assim enganar-me com a outra? Certamente aprendereis agora, madame, pois vereis a filha caçula perecer bem diante de vossos olhos!
E na presença da mãe, o rei esbofeteou e socou muito a cara da filha mais moça. Depois, mandou pegarem na cozinha uma tora de lenha, com a qual bateu-lhe bastante e fortemente na cabeça, nas costas, no peito e na barriga. Então, mandou decapitá-la ali mesmo. Em seguida, foi embora deixando o corpo da moça no meio da casa com a cabeça decepada ao lado; quis, assim, que a família lidasse sozinha com a remoção e o sepultamento, como parte da lição. A madrasta desfalecera de horror muito antes de ver findar o cruel castigo da filha, e entrou num deplorável estado espiritual do qual somente se veria recuperada no final do mês de novembro daquele ano, poucos dias antes das bodas de Gata Borralheira com o rei.
Nem a madrasta ou qualquer outra pessoa pôde impedir que Borralheira fosse também ao palácio experimentar a pantufla de vidro. Foi no dia 21 de maio de 1306, num momento em que a jovem se viu completamente só em casa. Depois de constatarem que a pantufla lhe servia perfeitamente, o rei levou Borralheira até a casa do pai e da madrasta para pedir-lhe a mão. E quando passaram pelo cemitério, não ouviram a voz de espírito algum. Ainda assim, o rei desceu do cavalo para examinar o pé da noiva; e ele estava intacto, puro, sem sangue ou qualquer ferimento. Cheio de felicidade, o monarca pôs-se a beijar o pé de Gata Borralheira, e ali ficou ajoelhado durante duas horas completas, beijando-lhe o pé.
Ambos casaram-se no dia 12 de dezembro daquele mesmo ano. A madrinha e madrasta da nova rainha pediu-lhe perdão por tudo que a fizera passar nesses três anos e meio; e a rainha prontamente a perdoou, pensando em como a mulher deveria estar arrependida de tudo devido ao cruel modo como perdera as filhas, e lembrando-se também de como haviam sido boas amigas antes que se tornasse sua madrasta. Sendo assim, o pai e a madrasta foram viver também no palácio real.
A pantufla de vidro foi posta em exposição numa redoma transparente no museu do castelo; e ainda hoje poderia ser vista lá, com a ponta manchada de sangue por dentro, caso não tivesse se quebrado acidentalmente no dia 4 de abril do ano de 1733.
E embora todos houvessem acreditado na sinceridade do arrependimento da madrasta, na noite do dia 6 de janeiro de 1307 ela entrou no quarto da rainha enquanto esta dormia e cortou-lhe o pescoço. Tendo matado Gata Borralheira, a madrasta viveu feliz e confortavelmente no castelo até o fim de seus dias. A rainha Borralheira tinha 17 anos de idade quando foi morta.
No dia 7 de junho de 1307 o rei, viúvo de Borralheira, casou-se novamente; e sua segunda esposa, no dia 14 de outubro de 1308, deu à luz um menino, o qual assumiria o trono após a morte de seu pai. O rei morreu no dia 20 de agosto de 1331, aos 60 anos e o pai de Gata Borralheira, por sua vez, morrera bem antes, em 7 de novembro de 1309, aos 59 anos. A madrasta faleceu no dia 18 de março de 1376, aos 104 anos de idade.



Texto de Mateus Amato Montalbano, 2012
Baseado nas versões de Giambatistta Basile (1632), Charles Parrault (1697) e Irmãos Grimm (1812) do conto de Gata Borralheira.