O vento ameaça levar-me a qualquer instante e a chuva parece não querer parar até finalmente tornar o cemitério em que estou num pântano. Entretanto as pessoas que me rodeiam não parecem minimamente importadas com o temporal, estão demasiado ocupadas a tentar transparecer uma imagem de dor à passagem do caixão, todos de óculos escuros, não para disfarçar os supostos olhos vermelhos e olheiras, mas para esconder a sua total ausência. Nenhuma delas está verdadeiramente triste pela perda do Sr. Sousa, o luto da sua própria esposa está presente apenas nas suas vestes. Na verdade a sua alma nunca esteve tão colorida em toda a sua vida como agora, estava finalmente rica! Finalmente tornou-se dona de tudo o que o marido possuia! Finalmente..., pensava ela, finalmente o velho Simão Sousa saiu do meu caminho, parecia que o homem estava preso à Terra, estava a ver que não chegava o dia em que a morte se dignava a leva-lo daqui para fora! Nem com todo o stress das empresas, que parecia consumir a vida de todos,ele ficava afectado... Não, ele não ficava abatido com tão pouco, antes pelo contrário! O velho parecia cada vez mais forte a cada ano que passava! Não seria doença ou ataque que o arrancaria deste mundo, teve de ser uma bala cravada em cheio na cabeça a finalmente a roubar-lhe vida à qual ele se agarrava firmemente, como se fosse uma carraça.
O caixão chegou finalmente à sua morada eterna, e os abutres engravatados já estão a sondar a nova presa. Cada um por sua vez vai cumprimentar a pobrezinha da Sr.ª Sousa, que a cada “os meus pesâmes” vai buscar o seu lencinho branco à mala para limpar mais uma lágrima que teima em cair sempre que alguém lhe fala do seu pobre marido, acabando por o voltar a por na mala, intacto, e totalmente seco, tal e qual como quando o tirara de lá.
A farsa acabou por fim, as pessoas já estão a ir embora e a deixar esta fantochada de vez, pensei por momentos. Mas não, não acaba por aqui, ela continua, só está fora dos terrenos do cemitérios, nada mais, porque a vida destas pessoas é uma farsa permanente! Todos estes senhores, tão púdicos e cultos, tão bem vistos na sociedade, são da pior escória que se arrasta por este mundo! Um aperto de mão destes senhores, é seguido por uma navalhada nas costas de que ninguém se pode defender, a única saída, é jamais lhes apertar a mão. Mas para mim já é tarde, pus-me no seu caminho por livre e espontânea vontade, sabendo perfeitamente que ou me tornaria um deles, ou então, não sobriveveria. Acabei por escolher a primeira opção, era a mais fácil, e penso que, a mais sensata, afinal, é a lei da sobrevivência, “quando não os podes vencer, junta-te a eles”, e agora, aqui estou, no funeral de um senhor pelo qual não nutro nem nunca nutri qualquer simpatia, nem mesmo respeito, antes pelo contrário, ele não passa de mais um da nossa espécie, e merece ser tão desprezado como qualquer um de nós. Fui também cumprimentar a Sr.ª Sousa, dando-lhe os meus mais falsos sentimentos, sabendo que ela, mais do que qualquer um dos presentes, estava radiante por ver o Sr. Simão Sousa finalmente pelas costas. Então, qual é a diferença entre mim, e o resto das pessoas que estiveram aqui presentes? Apenas uma, eu repugno-me com o que tenho de fazer para continuar a caminhar por este mundo, enquanto que os outros não se importam minimamente, antes pelo contrário! Gostam de viver assim, acham até que é o mais correcto, é afinal o que todos fazem, porque haverão de ser diferentes?!